Geocientista e biólogo explicam como os
componentes químicos do óleo são capazes de matar espécies marinhas,
impossibilitar pesca e turismo e causar graves doenças, como câncer, nos seres
humanos
O pesadelo ambiental que o Nordeste
brasileiro vive provavelmente se estenderá pelos próximos anos. O petróleo
derramado no oceano Atlântico atinge o litoral há quase 60 dias e tem potencial
para danificar, em alguns casos de forma permanente, tanto o ecossistema
marinho como a economia local e a saúde humana. É o que explicam, em entrevista
ao EL PAÍS, o geógrafo e geocientista Tiago Marinho, doutorando da Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE), e o biólogo André Maia. O petróleo de origem
venezuelana, conforme indicam suas características físico-químicas, atestadas
por pesquisadores do departamento de Geociência da Universidade Federal da
Bahia (UFBA), já atingiu 9 Estados nordestinos, mais de 80 municípios e
mais de 200 localidades. A Marinha trabalha com a hipótese de que o vazamento
partiu de um navio clandestino e que opera fora dos radares. O Governo de
Pernambuco informou que 1.358 toneladas de óleo foram retiradas das praias nos
últimos oito dias, até a última quinta-feira. Dez municípios e 28 praias foram
atingidas pelo vazamento, entre elas as mais importantes do balneário
turístico no litoral sul.
Os especialistas consultados por este jornal
acreditam que o Brasil já vive a maior tragédia ambiental de sua história.
"O nível de contaminação química do petróleo é gritante, altíssima. Em
águas isso se torna ainda pior, porque é conduzida para outros locais por causa
das correntes marinhas. Essa é a maior preocupação", explica Marinho, que
estuda a influência dos elementos no ecossistema e na vida do ser humano, além
de ser ativista da ONG Greenpeace. "Vamos entrar agora numa fase de
monitoramento dos ambientes costeiros, algo que demora de seis a nove meses de
investigação. Ao menos durante esse tempo é recomendável evitar as áreas que
tiveram contato com o óleo", alerta. Nesta quinta-feira, o Governo de
Pernambuco anunciou que vai investigar, em conjunto com oceanógrafos da
UFPE, a extensão do dano causado pela tragédia. Além dessa tarefa
investigativa, há algo ainda mais urgente a ser feito: tentar evitar que o
piche chegue a outros lugares, como o santuário de Abrolhos ou
Fernando de Noronha, explica o geocientista.
O petróleo é um combustível fóssil que possui
mais de 200 hidrocarbonetos. O benzeno, por ser cancerígeno, é considerado o
mais tóxico de todos. Ainda que o piche que chega às praias seja retirado,
esses componentes químicos continuam circulando pela corrente marítima sem que
ninguém perceba a olho nu. "O cenário otimista é que algumas dessas áreas
não tenha a presença do benzeno, mesmo as que tiveram algum contato com o
óleo", explica Marinho. "O pessimista é a contaminação por benzeno. O
ser humano não pode tomar banho se houver 0,7 mg por litro de água. A praia
ficaria então imprópria para banho e para a pesca". Somente o processo
investigação poderá definir o nível de contaminação de cada praia afetada.
Assim, os danos ambientais no litoral no Nordeste ameaçam se estender para
o turismo, a pesca e a culinária, pilares fundamentais da economia local. O
desastre ambiental pode facilmente se tornar econômico e social.
Diante da lentidão das autoridades, milhares
de pessoas vêm enfrentando o trabalho quase impossível de limpar as praias
com as próprias mãos, muitas vezes sem qualquer tipo de proteção. Em
Pernambuco, muitas delas tiveram que buscar clínicas e hospitais por causa de
sintomas de intoxicação. "A curto prazo, essas toxinas causam dor de
cabeça, náuseas, vômitos, dificuldade respiratória, dermatites e doenças de
pele", explica o biólogo André Maia. O problema maior, porém, é que o
benzeno é conhecido sobretudo por ser cancerígeno. "A longo prazo, essas
pessoas podem ter problemas de origem respiratória, neurológica, circulatória e
câncer. Essas pessoas deverão ser monitoradas pelo Governo pelos próximos 20
anos, para que se saiba os impactos do vazamento na saúde pública", opina.
O contato imediato com o óleo também faz com
que espécies marinhas como corais, mariscos e peixes morram sufocados. “Pela
quantidade de óleo que cai, é muito difícil salvar as estruturas que vivem nos
corais. O que se percebe de morte na praia é uma pequena parte, uma proporção
de 1 para 10”, explica Maia, que trabalha com a reabilitação e soltura de
animais silvestres através de seu projeto, o Trilogiabio, e em parceria com
órgãos ambientais e estaduais. “Isto é, se uma espécie morre no litoral,
significa que 10 estão sofrendo ações piores em alto mar”, completa.
"O desastre não poderia ter sido
evitado, mas o Governo poderia ter diminuído seus danos"
Outras espécies, mesmo que não morram, vão
absorver o benzeno e outras toxinas liberadas na água. "Quando não morrem,
seres como ostras, mariscos ou sururu, muito comuns em Pernambuco, filtram todo
esse material, que vai se acumulando. Uma pessoa que se alimenta pode ter um
problema de saúde sério associado a essa contaminação", explica Marinho.
Maia complementa e explica como toda a cadeia alimentar pode acabar intoxicada:
"Os animais que morrem intoxicados afundam em alto mar. Só que há outras
espécies que se alimentam desses seres mortos. E aí esse produto começa a
entrar na cadeia alimentar, realizando um processo que chamamos de
biomagnificação [acúmulo progressivo de substâncias]", explica. E
exemplifica: "Uma alga contaminada é comida por um peixe pequeno contaminado,
que é comido por um peixe maior também contaminado, e assim sucessivamente. O
final da cadeia é onde vai se acumular a maior quantidade de toxinas. E o final
dela somos nós".
Como lidar com a contaminação
Marinho explica que o petróleo venezuelano
"é mais consistente, denso". Ao contrário de outros tipos, que ficam
visíveis na superfície da água e podem ser aspirados por máquinas ou contidos
com boias com mais facilidade, o óleo venezuelano que hoje chega ao litoral
nordestino "viaja pelas correntes marítimas submerso", em uma
profundidade de 50 cm a 1 metro. Muitas vezes sequer é notado pelos navios que
patrulham em alto mar. Ao longo dessa trajetória, explica o geocientista, parte
dele é evaporado. Outra parte entra em decomposição, atingindo o fundo do mar
de forma permanente. O que sobra continua sua trajetória pelas correntes
marítimas, sofrendo com a temperatura e a salinidade da água e tornando-se o
piche espesso que, agora, chega às praias do Nordeste.
Marinho explica que o Governo Federal poderia
ter evitado essa chegada nas praias com uma ação mais rápida e coordenada, a
partir do Protocolo de Contingência estabelecido por decreto 2013. O Ministério
do Meio Ambiente garante que ele foi acionado em setembro, mas um ofício obtido
pelo jornal O Estado de S. Paulo indica que isso não ocorreu até
meados de outubro. “Há uma passividade dos organismos e dos governos, o que
gera uma demora para a recuperação”, opina. Por exemplo, redes e boias de
contenção poderiam ter sido empregadas mais cedo para evitar o avanço do óleo,
assim como a contratação de especialistas que usam fórmulas matemáticas para
tentar prever os caminhos das correntes marítimas. "O desastre não poderia
ter sido evitado, mas o Governo poderia ter diminuído seus danos. Embarcações a
50 ou 100 metros de distância das praias poderiam ter evitado que o óleo
chegasse a areia. Quando chega, nesse caso você também contamina o solo",
explica o geocientista.
O biólogo Maia lembra que, ao chegar na praia,
“esse petróleo se fragmenta, arrebenta e se mistura com corais e areias”. Parte
vem sendo retirado pelos voluntários e homens do Exército e da Marina em um
lento processo de peneiração, “um trabalho muito mais difícil”, acrescenta. São
partículas de dois a cinco milímetros que, se não são retiradas, podem voltar
para a água em momentos de maré alta.
Marinho lembra ainda que algumas prefeituras
não tiveram o cuidado ao manejar o piche retirado. Algumas chegaram a fazer
valas para acomodar os sacos cheios de óleo, sem ter o cuidado necessário de
colocar uma manta para evitar o contato com o solo. "Você pode acabar
contaminando áreas que não estavam contaminadas. Pela falta de conhecimento e
pela de preocupação em chamar pessoas técnicas que poderiam indicar como
manejar esse material. Em Itapuama, por exemplo, há vários olhos d'água e
lençóis freáticos importantes". Essa praia, do litoral sul de Pernambuco,
é considerada por ambos os especialistas como a que mais danos sofreu. Porto de
Galinhas se salvou por pouco. E é possível que Carneiros, mesmo tendo sido
atingida, também se salve. “Mas algumas praias, dependendo do teor de benzeno,
infelizmente não poderão ser frequentadas pelos próximos anos nem poderão
fornecer peixes e frutos do mar”.
Além de um trabalho de monitoramento e
recuperação de anos por parte do poder público, Maia explica que o processo
mais importante de renovação dependerá principalmente de um ente: a própria
natureza.
Fonte: El País
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