Está sobrando até para Fernando Henrique
Cardoso. Aos 88 anos, o ex-presidente entrou na mira do bolsonarismo radical.
Na semana passada, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, resolveu
compará-lo à Aids. O tucano não quis revidar a agressão.
Em entrevista, ele diz que o Brasil está
vivendo “sob o signo do ódio” e precisa voltar a cultivar a tolerância. “Ainda
não conseguimos entender que o outro é adversário, não inimigo”, afirma.
FH lança hoje o último volume dos “Diários da
Presidência”. O livro relata a eleição de 2002 e a transição para a posse de
Lula, seu rival histórico. Foi um processo civilizado, bem diferente do tom da
política atual.
O ex-presidente considera que a Lava-Jato
“exagerou”, mas evita criticar a prisão do petista. Numa passagem do novo
livro, ele afirma que é impossível governar o país sem “botar a mão na lama”.
**
Os
novos diários mostram como o sr. via o Brasil de 2002. Como vê o Brasil de 2019?
Hoje nós vivemos sob o signo do ódio. Isso é
ruim para o Brasil. Ainda não conseguimos entender que o outro é adversário,
não inimigo. Não posso tratar o Bolsonaro como inimigo. Ele foi eleito, é o
presidente da República. Eu discordo dele. Nunca o vi, nem estou pretendendo
vê-lo.
Na campanha, os ânimos se acirram. Mas tem que
haver um momento seguinte, em que você reduz o acirramento e busca uma
convergência possível. É do jogo ganhar ou perder. O que tem que haver é
lealdade com as regras. Isso não é uma coisa que tenha sido ganha no Brasil.
Ainda não temos uma cultura realmente democrática.
O
sr. tem sido muito atacado pelos bolsonaristas. Na semana passada, o ministro
da Educação chegou a compará-lo à Aids...
A declaração dele foi tão importante que eu nem
li... (Risos). Nós estamos vivendo um momento de polarização que é muito ruim.
Um ministro tem que prestar mais atenção ao que diz. Temos que baixar a bola,
aceitar que existem pessoas com pensamentos diferentes.
Como
avalia o governo?
É cedo para um julgamento taxativo. O governo
tem muitas partes. Há setores que são francamente ideológicos, veem fantasmas
em todo lado. É possível que o presidente às vezes seja levado por fantasmas.
Outros setores são sensatos. Não acho que os militares sejam insensatos.
É ruim o Executivo não ter uma agenda clara
para mostrar ao país. O presidente tem que explicar qual é o rumo. Hoje, quando
há rumo, é o rumo ideológico.
Na ditadura, você enfia a espada e faz. Na
democracia, é diferente. Minha atitude era oposta à do governo atual. Eles
buscam adversários até onde os adversários não existem.
Onde
essa busca pelo confronto vai parar?
Não acho positivo propor impeachments. Isso
desgasta o país. No caso do Lula, eu fui contrário. No da Dilma, fui muito
reticente. Não é que esteja defendendo a Dilma, o Lula ou o Bolsonaro. Estou
pensando no país.
Você desgasta as instituições quando a maioria
ganha, mas não leva. O vice-presidente também é eleito, mas ninguém presta
atenção. É preciso ter paciência histórica. Quem está contra o Bolsonaro deve
manifestar que é contra. Mas não acho que seja o caso de forçar.
A
democracia está em risco no Brasil?
Sempre existe risco. Como dizia Octavio
Mangabeira, a democracia é uma planta tenra, que precisa ser regada sempre. Se
você não cultiva a democracia e a liberdade, elas morrem. A democracia não é só
o formalismo, a eleição. É a crença num conjunto de valores e instituições.
Essas instituições estão funcionando.
O Congresso existe, o Supremo está funcionando,
a imprensa é livre. Os partidos estão meio arrebentados, mas existem. Temos que
usar esses instrumentos para expressar opinião, não para acelerar o ritmo da
História. O cara foi eleito.
Eu sei o que é viver num regime sem liberdade.
Não é o caso atual. Você tem liberdade para concordar ou discordar do governo.
Todo mundo sabe que eu não votei no Bolsonaro nem no candidato do Lula (Fernando
Haddad), com quem me dou pessoalmente.
Muitos
amigos tentaram convencê-lo a apoiar Haddad.
Muitos. Eu me dou bem com o Haddad, tenho uma
boa opinião sobre ele. Mas naquele momento o PSDB estava em luta com o PT em
vários estados. Como é que eu ia tomar posição a favor do PT?
O
ministro Gilmar Mendes, que o sr. indicou ao STF, diz que Lula não teve direito
a um julgamento justo. Concorda?
Acho que a Lava-Jato exagerou. Que tenha havido
algum preconceito contra o Lula e contra o PT, é possível. As pessoas têm
preconceito contra mim, contra você... Mas a Justiça julga fatos.
Já fui depor três vezes como testemunha do
Lula, a pedido dos advogados dele. Ele foi condenado porque há fatos. Não gosto
de ver o Lula preso, mas respeito a Justiça. Ele foi condenado em várias
instâncias. Eu lamento. Historicamente, era melhor que não tivesse ocorrido.
Mas ocorreu, o que eu vou fazer?
Em
que a Lava-Jato exagerou?
Eles podem ter errado? Podem. Pode haver uma
visão jacobina? Pode. Isso é bom? Não. Mas não podemos desmerecer a Lava-Jato.
Mesmo que tenha exagerado aqui e ali, ela conseguiu prender gente rica e
poderosa, o que é uma coisa difícil no Brasil.
Especialmente nos governos do PT, houve muita
transigência no sentido de se usar dinheiro público, via empresas, para fins
partidários. Isso é corrupção da democracia. Tão ou mais grave que a corrupção
pessoal. É inaceitável.
O
Supremo está julgando a prisão em segunda instância. Qual é a sua opinião?
A discussão é legítima, mas não acho que você
deva deslegitimar toda a Justiça para libertar os que estão presos. Até porque
não é só o Lula.
Não é uma decisão simples. Como está na
Constituição (que ninguém pode ser considerado culpado sem
condenação definitiva), é complicado.
Acho um exagero deixar os réus em liberdade
depois de duas condenações. No Brasil, quem tem dinheiro sempre continuou
recorrendo para não ser punido. Se os tribunais fossem mais céleres, esse
problema não existiria.
O
general Villas Bôas, ex-comandante do Exército e assessor do governo, voltou a
tuitar às vésperas de um julgamento. Há uma pressão indevida sobre o STF?
A manifestação de militares da reserva é um
alerta. Mas não vejo nenhum clima para uma convulsão social, como ele escreveu.
Nos
novos “Diários da Presidência”, o sr. reclama que seu aliado José Serra não o
defendeu na campanha.
Eu entendia as razões dele, o governo estava
com baixa popularidade. Nunca cobrei atitudes de ninguém. Cada um tem um
temperamento, vai fazer o quê? Nunca fui uma pessoa de melindres.
Aliás, gostei dessa expressão que o Sergio Moro
usou (em mensagem revelada pelo Intercept, o ex-juiz
diz que não queria melindrar FH na Lava-Jato). Mas não havia nada
concreto que pudesse me pegar. Nunca me meti em corrupção. Não é o meu estilo.
O
sr. afirma, nos diários, que é impossível governar sem “botar a mão na lama”.
Eu nunca concordei com a malandragem. Quando
fui para o Senado, meus colegas da universidade diziam: “Não sei como você
aguenta aquela gente lá”. Aquela gente lá é o Brasil. O Brasil tem malandro,
tem esperto, tem burro, tem gente honesta. Você precisa lidar com a realidade
para mudá-la. Ou você tem maioria, ou não governa.
A
transição de 2002 deixou lições para a política atual?
Muitas. Foi um processo civilizado,
democrático. Claro que eu queria que o Serra ganhasse. Quando o Lula foi
eleito, tentei mostrar que não seria uma tragédia para o Brasil.
Mas
as gravações mostram que o sr. considerava que ele não tinha preparo para o
cargo.
Nunca temi que o Lula fosse fazer uma
revolução. Ele não é um sujeito que quebre as instituições. Pessoalmente, o
Lula é mais conservador do que eu. O que eu temia era que ele não fosse
competente para fazê-las funcionar. Ele demonstrou que era competente. Eu errei
na avaliação.
Lula
diz que o sr. apostava no fracasso dele para voltar depois.
Nunca quis voltar ao poder. Fui presidente duas
vezes, basta. Para mim e para o povo.
Escrito por: Bernardo Mello Franco
[full_width]
Nenhum comentário:
Postar um comentário