Laudo feito pela promotoria mostra que
investigadores não auditaram material original, mas o recebido dos funcionários
do complexo de luxo. Laudo ficou pronto no mesmo dia da coletiva de imprensa
das promotoras, na quarta
Em uma investigação marcada por
falsos testemunhos e versões conflitantes, um laudo produzido pelo
Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro escancarou nesta quinta-feira
mais uma falha nos trabalhos de elucidação do assassinato
de Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes. Documento
anexado aos autos do caso mostra que a Promotoria não examinou a possibilidade
de que os arquivos de áudio que tratam da entrada de visitantes no condomínio
do presidente Jair Bolsonaro e do ex-policial Ronnie Lessa, acusado de ser o
atirador que matou a vereadora, tenham sido alterados antes de enviados às
autoridades.
Foi com base nessas gravações que as
promotoras do caso afirmaram, na quarta-feira, que um dos porteiros do
condomínio de luxo mentiu em depoimento, quando afirmou em outubro, em duas
oportunidades, que o ex-policial Élcio Queiroz, preso acusado de envolvimento
no crime, tinha solicitado autorização na portaria para visitar a casa de
Bolsonaro no dia do assassinato de Marielle, em 14 de março de 2018, antes de
de se dirigir à casa de Ronnie Lessa. O porteiro disse ainda ter
conversado com "seu Jair" a respeito do desvio de destino de Queiroz.
As declarações do funcionário do condomínio coincidem com o que ele mesmo
anotou em uma planilha manuscrita de controle de visitantes do local, mas não
com os áudios da guarita de segurança em posse dos investigadores. Na data,
Jair Bolsonaro estava em Brasília.
A revelação desse depoimento pelo Jornal
Nacional, da TV Globo, na terça-feira desencadeou protestos agressivos de
Bolsonaro, que se disse alvo de mentiras. Na quarta-feira, as promotoras do
caso Marielle convocaram coletiva de imprensa para explicar o andamento das
investigações com um laudo havia ficado naquele mesmo dia.
Na conversa com os jornalistas sobre o
assunto, a promotora Simone Síbilio, uma das responsáveis pela investigação,
disse que o porteiro mentiu e que sua versão não condizia com a prova técnica
do caso. A promotora detalhou que nos áudios entregues pelo síndico do
condomínio foi possível identificar que Lessa atendeu o interfone, e não
"seu Jair" como disse o porteiro, e que, portanto, foi o ex-policial
quem autorizou a entrada do seu parceiro Élcio para, então, seguirem para o
local do assassinato da vereadora.
Depois de ser questionada na entrevista sobre
como foram periciados e examinados esses áudios, a promotora disse apenas que
não foi identificada "nenhum fraude" pelos técnicos da promotoria nos
quesitos investigados. No entanto, o laudo obtido pelo EL PAÍS e por outros
veículos jornalísticos nesta quinta-feira mostra que entre os quesitos
investigados não estavam a possibilidade de exclusão de arquivos de áudio no
dia do assassinato. O laudo também mostra que os peritos da promotoria não
tiveram acesso ao equipamento do condomínio, portanto não teriam como verificar
se houve inserção de arquivos com data e hora forjada ou se houve exclusão de
arquivos.
A perícia incompleta não permitria concluir
se não houve, de fato, nenhuma forma de contato do porteiro com Bolsonaro ou
com alguém na casa dele. Na próprioa quarta, a Associação Nacional dos Peritos
Criminais Federais (APCF) já havia criticado a falta de um trabalho abrangente
nos áudios para "sanar todas as dúvidas e impedir que, no futuro,
prosperem teorias fantasiosas a respeito do episódio e da suposta menção ao
nome do presidente da República". Questionada sobre essa questão na
quinta-feira, o Ministério Público do Rio afirmou apenas que o "na mídia
enviada pela Delegacia de Homicídios não há indícios de adulteração no dia
14/03 ou em qualquer outro dia entre os meses de janeiro e março".
Uma planilha que demorou a aparecer
Na planilha manuscrita de visitantes do
condomínio, exibida no Jornal Nacional e a qual o EL PAÍS também teve
acesso, o porteiro anotou que Élcio seguiu para a casa 58, de Bolsonaro, e não
para a casa 65, de Lessa. A planilha revela 19 entradas de visitantes entre 15h
e 18h42 no condomínio, mas o laudo do Ministério Público não expressa se cada
acesso corresponde exatamente ao respectivo áudio do horário aproximado
disponibilizado pelo condomínio.
A planilha, aliás, ilustra outra falha na
investigação. Os investigadores só souberam da existência dela em outubro,
depois que receberam os dados extraídos do celular de Ronnie Lessa em uma
perícia feita pela
empresa israelense Cellebrite, solicitada pela Promotoria. Questionada se a
planilha poderia ter sido apreendida antes, quando Lessa foi preso, a promotora
Letícia Emile admitiu: "Foi um erro de análise".
Na análise das mensagens extraídas do celular
de Lessa, os investigadores observaram que sua mulher, Elaine, enviou para ele
uma foto da planilha de visitantes do condomínio referente ao dia do
assassinato de Marielle, demonstrando preocupação com isso, e afirmou:
"Fala com o Elcio". A foto da planilha foi enviada em fevereiro deste
ano, praticamente um mês antes de Lessa ser preso acusado de matar Marielle.
Os investigadores ainda não esclareceram se
Lessa e sua mulher tentaram fazer algo com a planilha do condomínio ou se
agiram para cooptar alguém no local. A
mulher de Lessa também foi presa recentemente, acusada de obstrução de
Justiça, porque foi identificado que ela estava ajudando a descartar no mar
armas adquiridas pelo ex-policial.
As falhas e os erros da investigação do caso
Marielle foram os argumentos usados pela então procuradora-geral da República,
Raquel Dodge, para solicitar a federalização da investigação dos possíveis
mandantes do assassinato de Marielle, em setembro. Como
mostrou o EL PAÍS nesta quarta-feira, ela argumentou que essa relação de
promiscuidade” entre as forças de segurança e os milicianos que impede que se
chegue aos mandantes do crime. “Tal contaminação, além de gerar óbvia
ineficiência (...) indica que existirão com absoluta certeza atividades
deletérias [prejudiciais] feitas por criminosos infiltrados na polícia”,
escreveu
Fonte: El País
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