MP do Rio diz que gravações contradizem
depoimento do porteiro. Por que Aras diz ter arquivado o caso apenas
"provavelmente" nesta quarta? Por que Witzel sabia do fala de
funcionário?
A simples menção do presidente Jair Bolsonaro (PSL)
nas investigações
do Caso Marielle, reveladas pela TV Globo nesta terça-feira, abriu um
novo capítulo de incertezas políticas e jurídicas na investigação. Nesta
quarta-feira, o Ministério Público do Rio afirmou que o depoimento do porteiro,
que contou à Polícia Civil que um dos suspeitos de executar a vereadora havia
buscado a casa do presidente Jair Bolsonaro no dia do crime, em 2018, não
condiz com as gravações do sistema de comunicação em poder das autoridades.
Segundo a edição do Jornal Nacional desta quarta, a perícia nos
áudios da guarita de segurança só foram encerradas na própria quarta. Veja as
perguntas respondidas e as ainda sem esclarecimento no caso.
O que disseram as promotoras do caso Marielle
a respeito do depoimento do porteiro?
Um
porteiro do local envolveu o nome do presidente Jair Bolsonaro com um
dos assassinos da vereadora Marielle Franco em depoimento. Segundo a Rede
Globo, o porteiro contou à Polícia Civil que o ex-PM Élcio de Queiroz, um dos
suspeitos de executar a vereadora e seu motorista, teve autorização da casa 58,
residência do presidente Bolsonaro, então deputado federal, para entrar em seu
condomínio no dia do crime, 14 de março de 2018, às 17h10. Embora tenha sido
autorizado pelo "Seu Jair", Queiroz acabou se dirigindo à propriedade
de Ronnie Lessa, PM reformado, e principal suspeito de apertar o gatilho para
executar Marielle e Anderson Gomes. Em coletiva de imprensa na tarde desta
quarta, a promotora do MP estadual, Simone Sibilo, chefe do Grupo de Atuação
Especial no Combate ao Crime Organizado (GAECO), disse que Queiroz foi
autorizado por Lessa a entrar e sustentou que o porteiro mentiu em seu
depoimento à Polícia Civil, que não condizia com as gravações. Antes das
declarações, o vereador Carlos Bolsonaro já havia exibido áudios que seriam da
portaria desmentindo o porteiro.
Por que o áudio diverge do registro manual da
portaria e do depoimento do porteiro?
Além do depoimento do porteiro, a Globo teve
acesso ao registro manual da portaria do Vivendas Barra. No papel consta que
Élcio Queiroz teria entrado no local às 17h10 do dia 14 de março de 2018, dia
do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes, e se dirigido para a casa
58, de Jair Bolsonaro. No entanto, Sibilo afirmou na coletiva de imprensa que a
prova técnica indica outra coisa: que a voz que autoriza a entrada do ex-PM é a
de Ronnie Lessa, às 17h07. Segundo a promotora, o porteiro pode prestar um novo
depoimento para esclarecer as divergências.
Foi feita uma perícia dos áudios? Quando esse
trabalho terminou?
A promotora Sibilo afirmou que não houve
adulteração nos áudios, que foram periciados, mas não informou de que forma as
gravações chegaram à investigação, se haviam sido coletadas por policiais diretamente
nas máquinas do condomínio e verificadas para identificar possíveis alterações
dos originais ou repassadas pelo empreendimento, onde o presidente Bolsonaro,
seu filho Carlos e Ronnie Lessa, preso sob acusação de ter executado Marielle,
têm casa. O Jornal Nacional informou que, de acordo com o Ministério
Público do Rio, o trabalho de perícia só havia sido encerrado nesta própria
quarta, apesar de os promotores terem o material ao menos desde 15 de outubro.
Quais são os protocolos de entrada no condomínio?
Bolsonaro destacou que, no dia e horário da
entrada de Élcio Queiroz no Vivendas da Barra, estava em sessão na Câmara dos
Deputados. Os registros da Casa, mencionados no Jornal Nacional, confirmam a
explicação do presidente. Contudo, há condomínios que já não utilizam apenas o
interfone ou telefone fixo para se comunicar com os vizinhos. Muitos porteiros
já se comunicam pelo telefone celular com os moradores.
O EL PAÍS apurou com fontes internas do
Vivendas da Barra que a portaria continua usando apenas o interfone interno do
condomínio. Quando um morador não responde, o porteiro deve ir diretamente até
a casa dele de bicicleta para se comunicar. Além disso, o vizinho deve sempre
autorizar a entrada de qualquer pessoa que não more no local.
Por que o porteiro teria mentido?
Segundo informações levantadas pelo EL PAÍS,
o porteiro que depôs trabalhava no condomínio do presidente há muitos anos.
Corre pelo Vivendas da Barra a informação de que ele prestou três depoimentos
sem a presença de seus advogados e durante suas férias — que ainda estão
em curso, o que indica que seu comparecimento foi recente. A divergência entre
o que foi dito pelo funcionário e registrado no livro da portaria deverá ainda
ser apurado, segundo as promotoras. Sendo ele um funcionário tão antigo e por
lidar com um caso tão grave como a morte de Marielle e Anderson, capaz de
colocar em risco sua própria vida, por que teria mentido?
Por que os áudios não chegaram até a TV
Globo?
A TV Globo afirmou no Jornal
Nacional que os investigadores estavam buscando as gravações para
compará-las com o depoimento e o registro em papel da portaria do condomínio.
Nesta quarta, contudo, o portal G1, do Grupo Globo, afirmou que "as
gravações de áudio estão em poder da polícia, mas não foram periciadas porque
os investigadores decidiram esperar por uma manifestação do Supremo Tribunal
Federal (STF) em função da citação ao presidente da República, Jair
Bolsonaro".
Além do MP do Rio já ter ciência das
gravações da portaria, o procurador-geral Augusto Aras afirmou na manhã desta
quarta, em entrevista à Folha, que o próprio Supremo e a PGR,
ao serem informados do depoimento, também receberam as ligações entre a
portaria do condomínio e os morados. As promotoras também confirmaram durante a
coletiva de imprensa que, após comunicarem o Supremo e enviarem os registros
manuais da portaria, complementaram as informações com os áudios poucos dias
depois. Também há indícios de que os áudios dos investigadores são os mesmos
que Carlos Bolsonaro teve acesso.
Tudo indica, portanto, que a Globo teve
acesso a uma fase anterior das investigações, quando o MP estadual e a Polícia
Civil ainda não tinham conhecimento ou periciado os áudios. Por que a emissora
recebeu a informação incompleta? A quem interessava passá-la?
Fui acusado injustamente. Sempre prezei os princípios constitucionais. Jamais vazei qualquer tipo de informação. pic.twitter.com/97OKaDNn41— Wilson Witzel (@wilsonwitzel) October 30, 2019
Por que a demora em conseguir as provas do
condomínio?
Ainda durante a coletiva de imprensa, as
promotodas do MP do Rio admitiram que o registro de entrada no condomínio não
foi apreendido no dia da prisão de Lessa e Queiroz, em março. Segundo a
promotora Carmen Carvalho, a Polícia Civil não levou o material por não ter
encontrado o registro de entrada na casa 65, de Lessa. Já a promotora Simone
Sibilio afirmou que os agentes não sabiam na ocasião que havia um sistema de
gravações entre a portaria e os moradores, algo pouco "comum" que
"nem os moradores sabiam que existia".
Contudo, o vereador Carlos Bolsonaro mostrou
áudios que aparentam ser os mesmos que os investigadores possuem — ainda
não está confirmado até que ponto são verdadeiros. Se os moradores não sabiam
da existência dos áudios, por que o filho do presidente sabia? E, se são
verdadeiros, por que Carlos Bolsonaro acessou com tanta facilidade um material
do condomínio que diz respeito a outros vizinhos? Os arquivos podem ter sido
adulterados? Há risco de obstrução de Justiça por parte da família do presidente?
O procurador-geral disse que já arquivou o
caso da menção do presidente? Quando foi? E o STF?
O procurador-geral Aras informou que menção a
Bolsonaro no caso Marielle, feita pelos promotores do Rio por meio de um
instrumento chamado "notícia de fato" já foi arquivada. E classificou
a revelação da TV Globo como um "factoide que gerou um crime contra o
presidente", segundo afirmou ao jornal Folha de S. Paulo.
Mais tarde, na edição do Jornal Nacional, Aras disse que não ter certeza
se o arquivamento ocorrera nesta quarta ou na terça. "Provavelmente hoje
(quarta)". Na coletiva de imprensa, as promotoras do MP do Rio
afirmaram que ainda esperam uma resposta do Supremo Tribunal Federal a respeito
do caso, enquanto que o procurador-geral afirma que o caso já foi arquivado
também pela Corte. Como atuará o Supremo? O EL PAÍS tentou contactar a Corte,
mas não obteve resposta para suas perguntas até a publicação desta reportagem.
Wilson Witzel interferiu nas investigações?
A crise também se estendeu ao Palácio da
Guanabara, sede do Governo do Rio de Janeiro. Durante sua live no Facebook, Bolsonaro não só
atacou duramente a Globo como também responsabilizou o governador Wilson Witzel
pelo episódio. Alguns meios informaram ainda na terça-feira indicavam que o
governador se mostrava ansioso pela divulgação do depoimento no principal
telejornal da Globo. Na manhã desta quarta, o presidente também afirmou ter
sido avisado por Witzel no dia 9 de outubro que o caso respingaria no clã
presidencial.
"Às 9h eu estava no Clube Naval do Rio
de Janeiro quando chegou o governador Witzel perto de mim […] e falou o
seguinte: ‘o processo da Marielle tá no Supremo’ […] ‘O porteiro citou teu
nome’. Ou seja, Witzel sabia do processo, que estava em segredo de justiça.
Comentou comigo", disse o mandatário a jornalistas. O governador rebateu:
"Ressalto que jamais houve qualquer tipo de interferência política nas
investigações conduzidas pelo Ministério Público e a cargo da Polícia
Civil", afirmou em nota no Twitter. Witzel ainda falou que as acusações
de Bolsonaro são "levianas" e negou qualquer responsabilidade nas
informações da TV Globo.
Diante dos indícios de que Witzel tem
conhecimento de detalhes das investigações, cabe lembrar que, como governador
do Rio, é o responsável direto pela Polícia Civil. Ainda assim, investigações
que correm sob sigilo não devem ser passadas para eles, segundo três juristas
consultados pelo EL PAÍS. Os três trataram a possível influência de Witzel como
interferência indevida. "O sigilo serve justamente para evitar a
politização das investigações. Polícias que vazam informações para presidentes
e governadores, para que eles usem essas informações politicamente (preparando
antecipadamente suas explicações, fazendo chantagem contra adversários ou seja
lá como for) são típicas de regimes ditatoriais", explicou Rafael Mafei,
professor de Direito da Universidade São Paulo.
E Moro? Pode interferir nas investigações?
Ainda nesta quarta, Bolsonaro solicitou
ao ministro da Justiça, Sergio Moro, que acionasse a Polícia Federal e o
Ministério da Justiça. O pedido foi atendido prontamente: em ofício enviado
a Procuradoria-Geral da República, Moro pediu a Augusto Aras que abra um
inquérito para apurar as circunstâncias do depoimento do porteiro a Polícia
Civil do Rio. "A inconsistência sugere possível equívoco na investigação
conduzida no Rio de Janeiro ou eventual tentativa de envolvimento indevido do
nome do Presidente da República no crime em questão, o que pode configurar
crimes de obstrução à Justiça, falso testemunho ou denunciação caluniosa (...).
É ainda possível que o depoente em questão tenha simplesmente se equivocado ou
sido utilizado inconscientemente por terceiros para essas finalidades",
escreveu Moro, que foi juiz federal da Operação Lava Jato. Aras afirmou que irá
conduzir essa investigação.
Assim como Witzel é o responsável direto pela
Polícia Civil, Moro, por ser ministro da Justiça, se responsabiliza diretamente
pela Polícia Federal. Mas não deve ter acesso a investigações sigilosas.
Contudo, possui um histórico ainda maior de possíveis interferências na
corporação. Durante uma coletiva de imprensa em junho, Bolsonaro afirmou que o ministro da Justiça vazou informações
ao presidente sobre o que a PF havia investigado até então sobre o
caso envolvendo candidaturas laranjas no PSL. No mês seguinte, Moro também
demonstrou influenciar as investigações sobre o hacker que acessou mensagens
dos procuradores da Lava Jato, reveladas pelo portal The Intercept, ao
prometer que o material colhido pela PF seria destruído.
O pedido do presidente a Moro e seu ofício
enviado à PGR podem resultar em uma interferência? "Se Moro entende que há
algum crime ou fato relevante que interesse a uma investigação criminal, deve
enviar notícia do fato, ou fazer pedido de apuração, pelas vias formais, à
Polícia Federal ou, idealmente, ao Ministério Público Federal. Eles decidirão o
que fazer com a informação: investigar, arquivar, etc", explicou Mafei.
"Um Ministro da Justiça ordenar à PF, diretamente, que mova as engrenagens
policiais para tirar o Presidente da República dos apuros em que uma outra
investigação criminal o colocou é absolutamente impróprio. De acordo com a Lei
1.079/1950, tal ato, mesmo que praticado por ordem do Presidente da República,
implicaria crime de responsabilidade do ministro, na medida em que consiste na
expedição de ordem flagrantemente ilegal", completou.
Sobre o ofício enviado à PGR colocando em
dúvida o depoimento do porteiro, Mafei argumenta que Moro "age mais uma
vez como advogado do Presidente", algo que não condiz com o cargo que
ocupa. "A título de comparação, no caso do impeachment de Dilma, o então
ministro José Eduardo Cardozo (se não estou enganado) saiu do MJ e tornou-se
AGU para poder defendê-la perante a Câmara e o Senado, justamente porque
Ministro da Justiça não é advogado do governo. Neste caso, Moro está
deliberadamente usando o peso de seu cargo para provocar órgãos de investigação
a se moverem no sentido que mais convém à pessoa de Jair Bolsonaro", explicou.
Fonte: El País
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